quarta-feira, 16 de junho de 2010

Existencialismo e Cristianismo

«Começarei por uma rápida análise do “eu”, pelo existencialismo. Quando me encontro a mim mesmo, encontro-me sempre em situação, isto é, estou no mundo. A forma do meu ser é sempre um estar aqui (Dasein). Neste meu estar aqui, a minha situação me preocupa, porque me fecha. As coisas das quais consiste a minha situação se opõem a mim e barram meu projeto. Sou determinado pelas coisas. Ao me projetar contra as coisas, verifico que estas podem ser apreendidas, compreendidas e empreendidas, e que me posso libertar delas ao transformá-las em meus instrumentos. Mas, por que posso fazer tudo isto? Porque a minha forma de ser é diferente da das coisas. As coisas estão diante de mim, cheias de si mesmas. São, na palavra de Sartre, “top choses” (coisas em demasia). Mas eu tenho em mim uma vacuidade, sou invadido pelo nada. Sou uma forma de ser defeituosa, porque estou aqui para a morte. Por este meu defeito, sinto nojo das coisas demasiadamente cheias. As coisas me enchem. E este meu nojo é o ponto de partida da minha decisão de libertar-me das coisas. A minha vacuidade, que é o meu estar para a morte, me permite transcender as coisas. É por esta vacuidade que estendo as mãos para alcança-las. É por esta vacuidade que existo. Existir significa estar invadido pelo nada. Este nada em mim, que é o próprio fundamento do meu estar aqui, é uma fenda na situação compacta na qual me encontro. É em virtude dessa clara noite de angustia do nada, que descubro dentro de mim, que vejo as coisas como são, a saber, coisas e não nada. O nada em mim, o nada que sou, é a fenda pela qual o mundo surge para estabelecer-se em meu redor na situação na qual me encontro. A situação em meu redor, a minha circunstancia, brotou do nada, que se esconde no meu centro. Foi o nada em mim, que estabeleceu o mundo. Como os senhores vêem, essa analise ontológica do “Dasein” desemboca numa espécie de budismo, embora numa espécie ocidental de budismo. O nada em mim, do qual falam os existencialistas, é um nada activo, “nadificante”, e tem pouca semelhança com o nirvana, do qual é paralelo. Com efeito, esse nada é o lugar deixado vago pelo Deus do Cristianismo, depois de ter este morrido, para usar uma palavra de Nietzsche. O existencialismo é cristianismo invertido.»

Vilém Flusser, Filosofia da Linguagem, p. 165, Staden-Jahrbuch, Bd. 18, São Paulo 1970.

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